Nascida em 9 de maio de 1951, na cidade de Marumbi, pertencente à comarca de Jandaia do Sul, no Paraná, Marlene Cardoso traz em sua trajetória de vida uma história marcada por resistência, amor à educação e profunda dedicação à formação humana. Filha de agricultores e cafeicultores, cresceu em um ambiente rural, simples, mas repleto de valores e esforços para oferecer à nova geração algo que sua própria mãe não teve: o acesso à educação. Mesmo sendo analfabeta, sua mãe compreendia o poder transformador do estudo, e foi essa crença que conduziu Marlene, desde cedo, a assumir a missão de ensinar.
Aos sete anos, começou seus estudos em escola pública municipal. No entanto, a crise do café levou a família a se mudar para Jardim Alegre, onde continuaram na lida com a terra. Ali permaneceu até os dez anos de idade. Porém, por ter saúde frágil, não conseguia manter a frequência escolar regular — o trajeto de 3 quilômetros a pé, ida e volta, era exigente demais para seu corpo debilitado. Os atrasos nos estudos tornaram-se inevitáveis.
Em 1964, deixou o colégio interno de freiras em Mandaguari, onde havia estudado até o 4º ano primário e feito o exame de admissão. A família já havia se mudado novamente, agora para um vilarejo chamado São João do Bulha, pertencente à cidade de São João do Ivaí. Foi nesse cenário de isolamento e precariedade, em meio às plantações e pequenas propriedades rurais, que Marlene deu seus primeiros passos como educadora. Incentivada pela mãe, começou a alfabetizar os filhos dos vizinhos agricultores. A pequena “escolinha” funcionava num rancho de pau-a-pique, com paredes de barro, sem infraestrutura, mas cheia de sonhos.
Crianças de 7 a 12 anos, que não sabiam ler nem escrever, reuniam-se naquele espaço improvisado para aprender com Marlene. A sala não tinha apoio do poder público: faltavam lápis, papéis, cadernos, carteiras, lousa. A mãe de Marlene improvisou uma lousa com a tampa de um caixote pintada de preto com piche. O giz, por vezes, era substituído por pedaços de gesso retirados das tampas de garrafões de vinho. Em plena Ditadura Militar, quando os recursos para a educação pública eram centralizados nas grandes cidades e destinados a uma minoria privilegiada, as crianças da roça seguiam sendo invisibilizadas. Ainda assim, Marlene persistiu.
Por conta das dificuldades, a escolinha rural precisou ser encerrada. Mesmo assim, sua vocação encontrou espaço: passou a ensinar junto com outras duas moças no vilarejo, também sem formação oficial. Atuavam como “professoras leigas”, termo comum à época para designar educadoras que, embora sem o curso Normal, assumiam o papel de ensinar em comunidades carentes. Marlene seguiu nessa função até 1970, quando sua vida tomou novos rumos.
Em 1971, já casada, mudou-se para Santo André, São Paulo. Poucos anos depois, em 1979, estabeleceu-se em Ribeirão Pires com o esposo e seus quatro filhos. Por muito tempo, dedicou-se à maternidade e à vida doméstica. No entanto, a paixão pela educação permaneceu viva. Em 1985, sentiu que era hora de retomar os estudos e foi atrás de completar o que não havia sido possível antes.
Concluiu a 8ª série por meio do supletivo, estudando no colégio particular São José. Em seguida, matriculou-se no primeiro colegial da escola pública EPSG Casemiro da Rocha, no bairro Ouro Fino — onde estudava na mesma sala que seu filho mais velho, também cursando o primeiro ano. Um episódio simbólico que mostra a quebra de barreiras geracionais e o compromisso com o saber em todas as idades. Após concluir esse ciclo, deu continuidade aos estudos no EPSG Dr. Felício Laurito, em Ribeirão Pires, onde finalmente ingressou no curso de Magistério, o antigo Normal, tornando-se oficialmente professora.
Durante esse percurso, a vida lhe trouxe uma surpresa: após 12 anos, nasceu sua quinta filha. Naquele momento, a casa estava cheia — quatro filhos adolescentes, a filha recém-nascida e um lar atravessado por três gerações. Esse cenário não a desanimou. Pelo contrário, serviu como impulso para novas decisões. Motivada por sua professora de Arte e Didática do Magistério, Marlene decidiu seguir para o ensino superior e ingressou na Faculdade de Educação Artística, encantando-se pelas linguagens visuais, plásticas e expressivas.
Essa nova fase consolidou sua trajetória. Marlene Cardoso lecionou por 28 anos na rede pública do Estado de São Paulo, compartilhando com estudantes seus saberes, experiências e, sobretudo, sua crença na educação como caminho de transformação. Sua história é, em muitos aspectos, a história de muitas mulheres brasileiras: marcada por lutas, renúncias, improvisos, maternidade, dedicação familiar e, acima de tudo, resistência.
Transformar uma tampa de caixote em lousa, usar gesso como giz, andar quilômetros a pé com saúde frágil, estudar ao lado do filho, voltar à sala de aula aos 30 e poucos anos com filhos em casa e um bebê no colo — tudo isso não representa apenas uma sucessão de fatos, mas uma narrativa de coragem e compromisso com o futuro.
Marlene nunca se deixou abater pelas condições adversas. Construiu sua própria trajetória na base da persistência, da fé e do amor pelo ensino. Tornou-se professora de artes não só pela formação acadêmica, mas por reconhecer na arte uma forma de liberdade, de criação e de expressão de tudo aquilo que lhe faltou nas palavras durante os primeiros anos de vida.
Hoje, sua trajetória inspira aqueles que acreditam na educação como um direito, uma missão e um legado. Marlene Cardoso é exemplo vivo de que o saber, quando cultivado com paixão, rompe qualquer barreira — seja ela física, social ou econômica — e floresce onde menos se espera.
Rafael Marques