Elizandra Souza é uma das vozes mais potentes e representativas da literatura contemporânea brasileira, especialmente no que diz respeito à produção literária de mulheres negras nas periferias urbanas. Escritora, jornalista e poeta, Elizandra tem construído uma trajetória marcada pelo engajamento político, social e estético, articulando sua experiência enquanto mulher negra periférica com uma crítica contundente ao racismo estrutural e ao patriarcado que moldam a sociedade brasileira.
Nascida em São Paulo, na zona sul da capital paulista, Elizandra Souza cresceu em meio aos desafios cotidianos da periferia, onde a desigualdade social, o racismo e o machismo não são apenas temas teóricos, mas realidades vividas diariamente. Foi nesse contexto que sua escrita floresceu como um instrumento de resistência, denúncia e também de afeto. Sua obra está intrinsecamente ligada aos movimentos culturais da periferia, como o hip-hop, os saraus e as bibliotecas comunitárias, que têm sido espaços fundamentais para o surgimento e fortalecimento de uma literatura marginal e engajada.
A poesia de Elizandra Souza é atravessada por uma forte dimensão política, mas sem abrir mão da sensibilidade e da subjetividade. Seu primeiro livro, Águas da Cabaça (2012), é um marco nesse sentido. Nele, a escritora resgata símbolos e referências da ancestralidade africana e das culturas afro-brasileiras, utilizando a cabaça — objeto sagrado em diversas tradições africanas — como metáfora para a memória, a resistência e a fertilidade do conhecimento ancestral. Cada poema é uma espécie de semente lançada ao mundo, propondo novos olhares sobre o corpo negro, a mulher negra e as experiências da diáspora africana no Brasil.
A narrativa poética de Elizandra não se limita à denúncia; ela também celebra a existência e a potência das mulheres negras. Seus versos são afirmativos, construindo uma estética do empoderamento, da beleza e da complexidade dessas mulheres, frequentemente invisibilizadas ou estereotipadas pela grande mídia e pelas estruturas tradicionais da literatura canônica. Ao fazer isso, sua escrita contribui para uma reconfiguração dos imaginários sociais, ampliando as possibilidades de representação para sujeitos historicamente marginalizados.
Além da poesia, Elizandra também se destaca na organização e participação em coletâneas e projetos literários que dão visibilidade à escrita de mulheres negras, como no livro Punga (2007), produzido junto com Akins Kintê. Sua atuação enquanto jornalista e articuladora cultural reforça seu compromisso com a democratização do acesso à literatura e com a formação de novos leitores e escritores nas periferias.
Elizandra Souza constrói, assim, uma literatura que é ao mesmo tempo pessoal e coletiva. Seus poemas são testemunhos de sua própria trajetória, mas também vozes de muitas outras mulheres que compartilham experiências semelhantes. Sua obra é parte de um movimento maior de mulheres negras escritoras que têm reivindicado seus lugares de fala e de escrita, como Conceição Evaristo, Kiusam de Oliveira, Cidinha da Silva e Cristiane Sobral, todas comprometidas com uma literatura que não se furta a enfrentar os dilemas do racismo e do machismo, mas que também aponta caminhos de cura, resistência e transformação.
Em tempos de retrocessos sociais e políticos, a poesia de Elizandra Souza se torna ainda mais urgente. Ela nos lembra que a literatura pode ser um ato revolucionário, um espaço de encontro, de escuta e de construção de mundos possíveis. Sua escrita pulsa vida, dignidade e luta. É uma escrita que sangra, mas também floresce — como uma cabaça cheia de água, memória e futuro.
Rafael Marques