Ronam é um artista que não se separa de sua história. Sua pintura é extensão direta de sua vida, de seu corpo, do lugar onde nasceu, das pessoas que o cercaram e da consciência que foi moldada ao longo do tempo. Filho de uma família operária, cresceu em Santo André, num ambiente marcado pela simplicidade e pelos pequenos gestos de resistência. Nesse cenário, a arte nunca foi um destino óbvio. Ao contrário, foi conquista lenta, atravessada por obstáculos materiais, pelas exigências da vida e por um senso de responsabilidade social que sempre esteve presente em sua formação. Sua mãe foi a primeira mulher da família a fazer faculdade — e isso já na fase adulta, quando ele era adolescente. Antes disso, trabalhava como caixa de mercado; depois, tornou-se professora e assim seguiu por toda sua vida profissional. Seu pai, funcionário público, oscilava entre empregos e trabalhos paralelos. Foi com ele, aliás, que Ronam começou a pintar — não telas, mas muros, casas, letreiros.

Essa origem material, concreta, é algo que nunca se dissociou de sua visão de mundo. A experiência de viver numa família onde o estudo era um esforço coletivo e onde o trabalho era, muitas vezes, compartilhado, moldou sua percepção de que tudo na vida é construído a partir de condições históricas e sociais. Essa consciência o levou, ainda na adolescência, a se interessar por livros complexos, dados por um tio exilado político — figura que teve um impacto profundo em sua formação intelectual. Esse mesmo tio o presenteava com obras marxistas, que ele lia repetidamente sem entender tudo, mas com a crença genuína de que, ao compreender aqueles textos difíceis, poderia entender melhor o mundo à sua volta. Esse gesto de busca, de tentativa de compreensão, é algo que permanece até hoje em sua pintura — uma arte que não se pretende neutra, mas que carrega consigo uma crítica, uma reflexão, um posicionamento.

Antes de entrar de forma mais profunda no universo da arte plástica, Ronam trabalhou pintando letreiros para uma escola de desenho. Foi nesse contexto que ele ganhou as primeiras bolsas de estudo. Chegou a desistir da primeira, levado pela atração da rua, da vida fora da sala de aula, mas mais tarde retornou, ganhando nova oportunidade. Estudou desenho com o pouco tempo e dinheiro que tinha, muitas vezes interrompendo o curso por necessidade e recomeçando quando possível. Juntou dinheiro com o que ganhava pintando e, depois de algum tempo, decidiu investir em sua formação. Estudou Física por um tempo, mas foi na Arquitetura que se formou, pagando grande parte da faculdade com o dinheiro que economizara com esforço. Trabalhou por anos em escritórios, fazendo desenhos técnicos, projetos, muitas vezes mal remunerado. Para complementar a renda, fazia bicos para outros arquitetos, trabalhando nos intervalos, às vezes à noite, outras vezes nos fins de semana. Paralelamente a tudo isso, continuava a desenhar, a pintar — agora já com uma intenção mais voltada à expressão pessoal.

Foi durante a pandemia que a virada definitiva aconteceu. Com a paralisação dos trabalhos formais e a sensação de suspensão da realidade, Ronam voltou-se de maneira intensa à pintura. Foi nesse período que compreendeu, com maior clareza, que a arte não era apenas um desejo ou um refúgio, mas uma necessidade vital. Desde então, vem se dedicando com mais profundidade, mais tempo e mais escuta ao que sua própria obra tem a dizer. E ela diz muito. Porque Ronam pinta o que vê, o que viveu, o que ainda sente vibrar ao seu redor. Seu foco está no cotidiano, nas pessoas comuns, nas figuras que habitam o bairro, a rua, os ônibus, as filas, os espaços onde o tempo se mistura com a luta. Não há espetáculo em sua arte. Há silêncio, presença, densidade. Cada rosto pintado é um testemunho. Ele não faz grandes intervenções na imagem — apenas retrata. Porque acredita que a própria imagem já carrega em si um conteúdo social e histórico inapagável.

Sua inspiração vem das coisas simples e das grandes obras da humanidade. Escuta música brasileira e latina com atenção, se emociona com poesia — especialmente a de Fernando Pessoa — e encontra beleza no banal, no ordinário, no que quase passa despercebido. Mas o que mais o move é essa possibilidade de olhar para algo aparentemente comum e encontrar ali uma abertura para a reflexão, para o questionamento. Ronam entende que a arte tem duas dimensões: a subjetiva e a objetiva. A subjetividade está no gesto, na escolha das cores, na textura, na forma como constrói seus retratos. A objetividade está no que escolhe dizer — e ele escolhe dizer sobre a classe trabalhadora, sobre a existência comum, sobre aquilo que muitos não querem ver, mas que constitui a espinha dorsal da sociedade.

Cada figura que pinta tem uma dimensão existencialista — carregam um certo silêncio, uma introspecção, como se estivessem presas em si mesmas, mas ainda assim resistindo. Essa estética do realismo que ele adota não é neutra. Está profundamente ligada a uma visão materialista da história. Ao pintar rostos e corpos do cotidiano, Ronam dá rosto a uma classe que, na maior parte das vezes, é invisibilizada. Seu trabalho é político, mesmo quando não tem slogans, porque se recusa a virar o rosto. Ele olha — e nos obriga a olhar também.

Ronam sabe que o tempo da arte é finito. Ele não tem ilusões sobre o quanto a vida exige e sobre o quanto, um dia, pode não ser mais possível pintar. Mas é justamente por isso que pinta agora. Pinta enquanto é possível. Pinta como quem escreve cartas para o tempo. Como quem registra não apenas uma estética, mas uma ética. A ética de quem veio de baixo, de quem sabe o peso da sobrevivência, de quem reconhece que fazer arte é também um ato de privilégio, mas que não precisa ser alienado da realidade. Pelo contrário: pode ser uma forma poderosa de devolvê-la ao mundo com mais verdade.

Rafael Marques

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